Ricardo Marques*
Estamos iniciando mais um período eleitoral no país, dessa vez para novas escolhas de presidente, governadores(as) senadores(as), deputados(as) estaduais e federais, dentro de um contexto de redução extrema dos indicadores de qualidade de vida nacionais. Mais uma vez, o debate imposto pela mídia e pelos meios de comunicação tradicionais e alternativos, mas também pelos partidos políticos, direcionam erroneamente o pensamento do cidadão comum, pouco conhecedor dos mecanismos reais da administração pública e de seu sistema de poderes e de tomada de decisão. Assim, mais uma vez, independente de escolhas mais assertivas ou não, a população brasileira assina de novo um papel em branco para que os seus executores e legisladores eleitos possam passar mais quatro anos tomando decisões que deveriam ser tomadas pela sociedade. E, mais uma vez, o protagonismo corre o risco de permanecer dentro dos partidos políticos e dos poderes constituídos.
Essas organizações e instituições passam a ideia de que o direito de votar basta em si e que o voto é a função máxima da democracia, como se, após o voto, nada pudesse mais ser feito, além de acompanhar e torcer para que os candidatos eleitos possam fazer algo pelo bem da população. Esse discurso é repetido pelos candidatos de esquerda e de direita, visto que estão mais interessados na disputa de poder do que na construção de um modelo de democracia efetivamente participativa. Esse discurso também está nas propagandas dos tribunais eleitorais, nas “campanhas de conscientização” de entidades sociais de um lado ou de outro, fazendo com que o povo permaneça sempre como massa de manobra de decisões ora mais voltadas para as questões sociais, ora não.
A não implementação de uma democracia representativa poderia ter, no passado, um álibi muito forte, que seria a impossibilidade de que todos pudessem opinar e decidir sobre uma questão específica da administração pública. Hoje mais não. Se temos tecnologia suficiente para enredar pessoas em multi conexões em tempo real, e dela criarmos estratégias comerciais para entender seus desejos e interesses, por que não utilizar essas mesmas tecnologias para criarmos as ferramentas que poderão atender à consulta dos reais anseios sociais? E não digo apenas no que já está previsto na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 14, que prevê os instrumentos do Plebiscito, do Referendo e da Iniciativa Popular. Tampouco apenas na participação de representantes populares nos conselhos.
A implantação em alguns municípios brasileiros do Orçamento Participativo foi um passo importante, mas ainda pouco efetivo do que podemos fazer em relação ao caminho pela via da democracia participativa. É preciso que os poderes assumam, de fato, a responsabilidade de cada um, sem que extrapolem suas funções e seu propósito. O fato de extrapolarem suas responsabilidades, tirando da população todo o poder de decisão, é justificado pela ideia que só assim haverá um bom andamento da atividade pública. O que não é verdade.
Essa narrativa funcionou muito bem até agora e resultou num estado onde o poder parece ser um “patrimônio” de poucos: daqueles que estão inseridos no ambiente da política partidária, ou mesmo ligados a grupos de poder, que vão oscilando entre o poder econômico e o poder político-social de sindicatos e entidades representativas. Sempre coube à população exercer, quando muito, o “direito ao voto” e acreditar que esse é o seu único papel como “cidadão”.
É preciso desconstruir o artigo 1º da Constituição Federal brasileira que, por mais que pareça um bradar histórico em defesa da democracia, por outro lado, limita a participação popular quando afirma que “o poder do povo deve ser exercido por meio de representantes eleitos ou diretamente, (apenas) nos termos da Constituição.” De acordo com o texto da CF, só existem duas formas de atuação popular: ou o povo aceita os seus representantes eleitos, ou participa por meio dos instrumentos legais existentes na constituição, todos eles, não garantidores de fato, da emanação de um poder popular. Nos tempos atuais, cabe uma nova discussão, uma verdadeira disrupção, para que possamos construir, com o apoio da tecnologia e do conhecimento, novos instrumentos que, façam, de fato, o poder emanar, definitivamente, do povo.
E quais seriam esses instrumentos capazes de avançar institucionalmente o país para um modelo disruptivo de democracia participativa? A seguir, algumas sugestões iniciais para que possamos pensar nessas novas possibilidades, visto que esse é um caminho que precisa ser construído por muitas mãos e, claro, com muita pressão popular.
Emendas populares substituindo as emendas parlamentares – Sendo o legislativo estadual e federal instâncias de fiscalização e de proposição de leis, qual o sentido das emendas parlamentares, se essas, na verdade, são instrumentos para manutenção do poder de políticos em suas bases eleitorais? Esse “poder” dos parlamentares de incluir projetos provenientes de suas decisões pessoais no orçamento público serve claramente para atender interesses de correligionários, o que provoca um desequilíbrio muito grande no período eleitoral entre candidatos detentores de mandato e aqueles que ainda buscam espaço em meio às prioridades dos partidos políticos. A criação de emendas populares, que poderiam ser provocadas por cidadãos e entidades sociais, e enviadas por meio de um volume de assinaturas e concordância de uma grande parcela da população, assistiriam muito melhor às demandas e necessidades do território e pode tornar-se uma ferramenta possível e justa de estruturar o orçamento público de maneira democrática.
Geoprocessamento intuitivo substituindo o atual modelo de Portal da Transparência – A Universidade de São Paulo, por meio da Escola de Artes, Ciências e Humanidades desenvolveu um projeto intitulado “Cuidando do meu bairro”, que consiste em criar uma plataforma simplificada e intuitiva onde qualquer cidadão poderia ter acesso às obras que estão sendo realizadas no município, apenas movimentando o mapa da cidade. Assim, informações sobre o custo total, valor empenhado e valor gasto, percentual de conclusão da obra, dados do processo licitatório, entre outras informações, ficam claras e de fácil entendimento para qualquer pessoa que queira acompanhar os investimentos municipais. Esse modelo é muito mais poderoso e assertivo do que os portais de transparência, utilizados por uma quantidade ínfima de cidadãos e que, na prática, não informam praticamente nada que seja entendido pelo cidadão comum, se tornando meras ferramentas de cumprimento de uma lei que não tem a menor efetividade.
Esses são dois exemplos (de muitos) que poderiam alimentar fortemente um novo caminho na gestão pública do país, por meio da democracia participativa. Mas projetos como esses não vão sair do papel sem a pressão popular. Candidato nenhum, quando eleito, vai defender projetos que resultem na diminuição do seu poder de decisão. Sejam eles de esquerda, direita ou de centro. Que essa eleição seja capaz de constituir poder a executores e legisladores que queiram, pelo menos, ouvir esses anseios. Que queiram cumprir, o que verdadeiramente estarão designados, ou seja, no Poder Executivo, “executar o desejo do povo”, no Poder legislativo, “criar as leis e regras para o bom convívio e a melhoria da qualidade de vida da população”. Que o aprendizado dos últimos anos de crises institucionais, econômicas e políticas no país traga pelo menos um aumento da consciência política e um desejo maior de participação. Não há outro caminho para construirmos um país melhor.
*Ricardo Marques é administrador, Mestre em Desenvolvimento Regional, Doutorando em Território, Ambiente e Sociedade e Consultor de Cidades.